quarta-feira, 22 de maio de 2019

LIVROS | Se Isto é Uma Mulher - Sarah Helm


Já li este livro há algum tempo e, volta e meia, dou por mim a pensar nele, nas histórias verídicas que encerra e na forma visceral e profunda com que me tocou.

Se Isto É Uma Mulher, da autoria da jornalista Sarah Helm, retrata aquilo que foi o tão pouco conhecido campo de concentração de Ravensbrück - um campo-prisão (de trabalho escravo e de morte) só para mulheres (talvez, por isso, tão esquecido e renegado). Nele foram encarceradas mulheres vindas de vários locais, não só judias, mas também presas políticas (comunistas, soldados do exército vermelho, membros da resistência), sem-abrigo, prostitutas, criminosas, testemunhas de jeová e de outras religiões, enfim, as mulheres que a ditadura nazi considerava "inferiores" e "conspurcadas". Durante a guerra, cerca de 132 000 mulheres, provenientes de mais de 20 países, passaram por Ravensbrück. Mais de metade destas mulheres morreram à fome, espancadas ou executadas a tiro ou nas câmaras de gás.

Apesar de apresentar uma realidade horrenda, este livro é um hino à força e à coragem das mulheres. Mesmo num sítio tão aterrador, sofrendo espancamentos constantes, sendo obrigadas a passar horas a trabalhar debaixo de neve e tendo direito a comer apenas uma vez por dia, muitas destas mulheres conseguiram resistir, sobreviver. Apoiaram-se. Ajudaram-se. Protegeram-se.

Mulheres como a comunista Olga Benario, que não abdicou nunca dos seus ideais políticos e que, juntamente com as presas políticas comunistas, organizou uma espécie de irmandade que as levou a conseguir sobreviver da melhor forma possível aos horrores do campo de concentração. Olga tornou-se numa espécie de líder querida, justa, amiga. Foi executada na câmara de gás. Em sua homenagem foi construído um memorial/estátua - Tragende - que representa o momento em que Olga pegou numa companheira desfalecida e a carregou sozinha nos braços. É uma imagem simbólica, que representa a união entre as mulheres, mesmo perante tantas dificuldades e miséria.

Também Margarete Buber-Neumann me tocou, pelo facto de ter passado grande parte da vida em campos de concentração: primeiro nos campos de trabalhos forçados de Estaline (por ter desertado do partido comunista) e depois em Ravensbrück. Margarete conseguiu sobreviver até ao final da guerra, quando foi libertada. No campo de Ravensbrück fez de tudo para sobreviver e para ajudar as companheiras a sobreviverem. Ao início, foi ostracizada pelas prisioneiras comunistas (por ser uma desertora) mas conseguiu superar todas as provações e manter-se viva até ao fim.

Kathe e Rosa, as amigas inseparáveis que se ajudaram e protegeram mutuamente até serem separadas pela morte (Kathe foi executada).

Krysia, a polaca que fez parte do grupo de jovens que foi alvo de experiências médicas na enfermaria do campo de concentração [injectavam bactérias juntamente com estilhaços nas pernas das mulheres para lhes provocarem gangrena e tétano, entre outros horrores mais] e que encontrou forma de escrever cartas secretas para o exterior usando a própria urina. Foi Krysia que denunciou as experiências macabras de que eram alvo as mulheres de Ravensbrück. Conseguiu sobreviver até ao final da guerra.

Temos também Yevgenia Klemm, soldado do Exército Vermelho, que foi capturada juntamente com outras soldados. Tornou-se na sua líder e na sua força. Foi graças a Yevgenia que muitas das mulheres conseguiram aguentar-se. Foi Yevgenia que impediu que o seu grupo de mulheres fosse violado aquando da libertação do campo. Depois da guerra, foi considerada traidora do partido comunista por ter permitido que as mulheres fossem capturadas. Yevgenia aguentou cerca de três anos no campo de concentração, sendo submetida às maiores atrocidades. Conseguiu sobreviver, por ela e pelas suas camaradas. Aguentou tudo. Só não aguentou o facto de ser considerada traidora e desertora. Suicidou-se pouco tempo depois do fim da guerra.

Loulou Le Porz e Violette Lecoq, a médica e enfermeira francesas, que se tornaram amigas inseparáveis e que, juntas,  foram os anjos do  Bloco 10 [o bloco da morte, para onde eram enviadas as mulheres gravemente doentes]. Contra todas as faltas de meios, Loulou e Violette, ainda assim, conseguiram salvar muitas mulheres da morte. Chegou uma altura em que as mulheres doentes eram executadas para não darem mais despesas. Loulou e Violette conseguiram evitar muitas das execuções, escondendo as mulheres doentes e tratando delas conforme podiam.

Não poderia deixar de falar, também, de Johanna Langfeld, a tirana chefe das guardas que, a certa altura, deixa de conseguir compactuar com tamanhas atrocidades e é despedida. Johanna Langfeld acaba por ter um certo interesse, na medida em que vive numa constante dualidade de sentimentos: por um lado, acredita cegamente nos ideais nazis, por outro, não consegue compactuar com a violência cada vez mais extrema e com as execuções levadas a cabo no campo. Anos mais tarde, num estado debilitado e de quase loucura, vai procurar Margarete Buber-Neumann para lhe pedir desculpa por tudo o que fez no campo. Como estas mulheres há muitas mais. Muitas, muitas mais. Apenas seleccionei algumas para dar o exemplo e para vos deixar com um pequeno vislumbre daquilo que podem encontrar no livro.

As atrocidades relatadas tornam-se cada vez piores a cada página virada. As experiências médicas macabras, os bebés que eram mortos à nascença, o kinderzimmer, onde as crianças eram deixadas a morrer à fome, à sede e ao frio,  o bunker, onde as mulheres eram espancadas até à morte, as câmaras de gás e as execuções a tiro, enfim, uma série de factos difíceis de imaginar mas que aconteceram.

Convém ainda dizer que Ravensbrück foi dos últimos campos a ser libertado. Muitos outros o foram primeiro, antes do fim da guerra, por entidades da Cruz Vermelha. Ravensbrück não. Aquelas mulheres, as que sobreviveram, foram as últimas a serem libertadas.

Se Isto É Uma Mulher é mais do que um livro. É história. A nossa história enquanto humanidade. Foi, talvez, o livro mais difícil que li até hoje. Na minha opinião, é um livro que toda a gente deveria ler. Digo mais, é um livro que todas as mulheres deveriam ler. É um pedaço importante da nossa história enquanto género feminino. A prova de que a força, a resiliência, o instinto de sobrevivência e a união entre mulheres é capaz de tudo, é capaz de tanto.

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